EM SITUAÇÕES EMERGENCIAIS, GOVERNO PODE ABRIR DIÁLOGO COM FACÇÃO CRIMINOSA, DIZ SOCIÓLOGO ESPECIALISTA EM SEGURANÇA
MARIO CESAR CARVALHO
DE SÃO PAULO
Em situações emergenciais, quando as mortes se
acumulam numa guerra sem fim, é preciso negociar com o crime. Loucura? O
sociólogo Claudio Beato, 56, um dos maiores especialistas em segurança no país,
diz que não.
Ele cita o levante da facção criminosa PCC
(Primeiro Comando da Capital) em 2006, no qual houve aparentemente um acordo
com o governo, como contraexemplo. "Se houve acordo, por que não fazer
isso de forma transparente?"
Os exemplos bem-sucedidos de negociações com
criminosos, segundo ele, vão dos EUA a El Salvador, onde a igreja intermediou
acordos. No Brasil, a polícia faz acordos informais com o crime, de acordo com
ele, que deveriam ser institucionais.
Para Beato, ligado ao PSDB de Minas, a falta de
transparência só aumenta a sensação de insegurança, como diz nesta entrevista.
Folha - São Paulo tinha uma política de segurança
que era considerada exemplar. O que aconteceu para essa política desmoronar?
Claudio Beato - Não acho que ela está desmontando.
Os números não apontam para uma situação dramática. O que está acontecendo é um
aumento de homicídios.
O que houve foi um investimento alto na última
década, em que alguns departamentos, como o de homicídios, souberam aproveitar
os recursos. Teve avanço grande na investigação, o que resultou na queda dos
homicídios de mais de 70% em dez anos.
E o investimento em prisões? O que deu errado?
O sistema em São Paulo cresceu muito e você perdeu
o controle do interior das prisões para facções. O sistema prisional brasileiro
é falido.
Você prende muita gente, mas isso acaba piorando a
criminalidade fora das prisões. É uma massa que fica sob controle dos grupos
que mandam nas prisões.
É o que aconteceu com o PCC, com o Comando
Vermelho. O problema de São Paulo é que é um Estado rico e lançou mão do
aprisionamento mais ou menos sem critério, e agora está pagando o preço.
Qual é a alternativa a essa política de
aprisionamento?
É não deixar o crime acontecer. Como se faz isso? É
preciso conhecer muito bem o contexto em que os crimes ocorrem. Mas não existe
no Brasil a ideia de uma polícia que atue para que os crimes não aconteçam.
Onde há polícias assim?
William Bratton é o grande reformador de polícias.
Reformou a polícia de Nova York e de Los Angeles. Ele defende que você precisa
entender o crime, intensificar a análise criminal para não deixar o crime
acontecer.
Isso está muito longe do modo de agir da polícia
brasileira. Há unidades como a Rota [tropa da PM paulista] e o Bope [tropa da
PM do Rio] que saem à rua com a ideia de guerra contra o crime.
Qual o problema da tal guerra contra o crime?
A tendência dessa tática é o que aparentemente está
acontecendo em São Paulo: vira uma guerra particular entre a polícia e as
facções.
Seria uma guerra da Polícia Militar contra o PCC?
Não tenho dúvidas. A dúvida é: qual o tamanho
disso? O secretário [Antonio Ferreira Pinto] vem com uma questão muito
fantasiosa: de que o PCC não tem importância.
Não é bem assim. O fenômeno contrário também ocorre
em meios acadêmicos, que acreditam que foi o PCC que diminuiu o crime em São
Paulo. É fantástico! Você pensar que uma organização tenha capacidade de
controlar crimes domésticos, em botequins, do tráfico. É o que um amigo
americano chama de "big gang" [grande gangue, e um trocadilho com
"big bang", explosão que teria originado o universo].
Entre esses dois opostos, é difícil saber qual é o
tamanho do PCC. Seria um grande serviço para a sociedade, e a própria polícia,
saber exatamente o que está acontecendo. A falta de informação aumenta a
sensação de insegurança.
O que você acha da decisão da Secretaria da
Segurança de São Paulo de usar a Polícia Militar contra o tráfico?
É uma armadilha achar que as PMs possam resolver o
problema de segurança pública, como se fosse possível fazer isso sem ter uma
atividade mais investigativa, que é própria da Polícia Civil.
É um erro esquecer da Polícia Civil. Mas o erro
maior é conviver com as duas polícias.
O ideal seria a fusão?
O ideal seria acabar com o modelo definido pela
Constituição de 1988, de duas polícias. Você precisa de uma polícia de ciclo
completo, com patrulhamento ostensivo e investigação. Nos países onde a polícia
faz isso o resultado é mais efetivo. Você junta as qualidades das duas.
Há uma crença de que a PM é imune à corrupção.
Corrupção é muito comum entre a Polícia Militar.
Hoje a corrupção está bem distribuída entre as duas polícias. O tema das
reformas das polícias é urgente. A divisão das polícias é artificial.
SP vive uma situação de pânico, que o governo tenta
minimizar com a alegação de que a polícia já enfrentou situações piores e
venceu. Você acredita nisso?
Um dos problemas é que a área de segurança não é
muito transparente. É fato que a polícia de São Paulo enfrentou um problema
muito mais grave em 2006. Como é que resolveu? Alguém sabe? Tem um monte de
lendas, de boatos. Eu até hoje não sei o que aconteceu em 2006.
Há quem diga que houve um acordo com o PCC.
Se houve acordo, por que não fazer isso de forma
transparente? El Salvador acabou de fazer um grande acordo com as Maras. São
grupos mais violentos e com inserção social muito maior do que o PCC. Em El
Salvador, houve um investimento muito grande em prisões duras, como algumas de
São Paulo. As prisões funcionaram, mas a situação fora piorou. Houve negociação
para tirar alguns líderes dessas prisões desde que ajudassem a controlar a
situação fora. Foi intermediado pela Igreja Católica.
Você acha que o governo deveria negociar com o PCC?
Não sou contra a negociação, eventualmente, e de
forma pontual. Vou falar uma coisa que será muito criticada. Isso aconteceu em
Boston. O projeto mais conhecido de controle da violência nos EUA, chamado
"Cessar-Fogo", foi feito por meio de um conjunto de ações da polícia,
prendendo de forma mais focalizada o que eles chamam de alavancas do crime.
Houve também ofertas de empregos, melhoria de condições sociais. E a negociação com as gangues foi feita pelos pastores. Eles sentaram com as gangues e policiais e negociaram um cessar-fogo. Em Medellín [Colômbia] também houve acordo.
Houve também ofertas de empregos, melhoria de condições sociais. E a negociação com as gangues foi feita pelos pastores. Eles sentaram com as gangues e policiais e negociaram um cessar-fogo. Em Medellín [Colômbia] também houve acordo.
Os governos federal e o paulista travaram uma
disputa sobre quem sabe mais sobre o crime em SP. Isso faz sentido?
Isso é deplorável. Em 2006, foi combinado que a PF
e a Polícia Civil trocariam informações, mas isso só acontece quando há uma
força-tarefa.
Eu tenho uma crítica muito grande à maneira como a
polícia trata informação no Brasil.
Inteligência aqui é ficar escutando celular de
preso. Isso é uma parte.
Eu vi no MIT [Massachusetts Institute of
Technology] um sistema em que você consegue seguir o movimento de todos os
celulares de Nova York, e você pode destacar dois celulares. É uma ferramenta
fantástica. Você saberia como criminosos se movimentam fora dos presídios.
Em 2006, a Promotoria analisou mais de 500 contas
bancárias atribuídas ao PCC e o resultado foi pífio. As contas eram de R$ 300,
R$ 400.
Talvez o PCC não seja essa coisa toda que as
pessoas pensam. Talvez a parte mais organizada do crime não seja o PCC, sejam
estruturas organizadas internacionalmente.
O problema é a falta de transparência da segurança.
Tudo é tratado como segredo. Isso é uma herança da comunidade de inteligência
da ditadura militar, do SNI [Serviço Nacional de Informação].
Não temos essa informação organizada e clara para o
público. Nos atentados em São Paulo, não se sabe quantos são acertos de
atividades paralelas de policiais, quantos são retaliações do tráfico ou
execuções da polícia.
O resultado é que todo mundo começa a fazer
suposições e isso gera insegurança. Se o secretário da Saúde enfrentasse uma
epidemia de cólera, imagina a quantidade de informação que ele teria de dar. O
secretário da Segurança não fala. Não é só em São Paulo. Não há prestação de
contas.
Fonte: Folha de S. Paulo
Fonte: Folha de S. Paulo